quarta-feira, 1 de abril de 2009

Predestinação como parte da historia da salvação. O tema sob outra perspectiva. Alem da maneira calvinista de ver o assunto.

Predestinação como parte da históriada salvaçãoResumo: O artigo procura trabalhar o conceito teológico da predestinação a partirde uma leitura histórico-salvífica. Para isso, faz uso do método de Oscar Cullmann.O objetivo é colocar o tema sob outra perspectiva, além daquela maneira calvinistade ver o assunto. Com esse intuito, descrevemos, de maneira panorâmica, o trajetosoteriológico dentro da história, começando com Israel, Jesus, Paulo e a Igreja, comocomunidade de predestinados dentro da história redentiva.Palavras-chave: Predestinação, eleição, história da salvação, IgrejaAbstract: The article looks for to working with the theological concept of the predestinationfrom a historical salvation reading. E, for this makes use of the methodef Oscar Cullmann. The objective is to place the subject under another perspective,beyond that calvinist way to see the subject. With this intention, we describe, in panoramicway, the salvation passge inside of history starting with Israel, Jesus, Paul andthe Church, as community of predestination inside of redentiva history.Keywords: Predestination, Election, Salvation History, Church.IntroduçãoO interesse pelo tema é justificável por dois motivos. O primeiro é que o assuntosempre foi discutido dentro de uma leitura calvinista (principalmente no meioprotestante). Muito raro encontrar textos de autores com tradição protestante quelevantem o tema sem abordar a perspectiva calvinista.O segundo motivo é de método teológico. O método da história da salvação,expressão cunhada por Johann Albrecht Bengel (1687-1752), é usado para designara natureza da Bíblia como relato de Deus operando a salvação na história de umpovo: Israel e a Igreja. O método postula uma leitura bíblica a partir da obra redentorade Deus no decorrer da história.Teólogos como Gerhard von Rad, no Antigo Testamento, e Oscar Cullmann, noNovo Testamento, trabalharam sua teologia redentiva a partir da história da salvação.O que proponho é a aplicação da leitura histórico-revelacional de Deus com seudesdobramento na predestinação como ponto histórico na reconciliação divinohumana.Predestinação em perspectivas teológicasA predestinação como conceito teológico tem sua base em Agostinho e sua ênfasena graça de Deus, onde Agostinho entende que Deus concedeu sua graça aalguns e a outros não desde a eternidade. Por isso, para ele, o número dos eleitosTeólogo, pastor da Igreja Batista Memorial em Iporanga (SP) e professor de Filosofia no Ensino Público. Email:pralgoncalves@yahoo.com.br. Blog:Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano III, n. 22estava rigorosamente limitado. A divisão que Agostinho faz entre os eleitos, ouagraciados com a graça de Deus, e os não eleitos, já se mostra em uma “predestinaçãodupla”, algo que Calvino irá desenvolver mais tarde.João CalvinoCalvino trabalha com a predestinação dupla. Compreensão que desenvolveupara explicar a decisão de Deus em eleger quem seria salvo e quem estaria perdido.Para o teólogo de Genebra, Deus escolhe tanto os salvos como os condenados nãopor meio de sua presciência — saber de antemão os que iriam crer — mas porqueele assim o quis.Os escolhidos para a condenação não tem nenhuma chance de redenção, porque,para Calvino, Deus veda o caminho dos réprobos para que eles não sejamsalvos. A escolha de Deus não depende de qualquer virtude humana, ela estáfundamentada na soberania de Deus, por esse motivo a morte-ressurreição de JesusCristo tem um caráter limitado — somente para assegurar a salvação dos eleitos.A definição de predestinação para o teólogo é a seguinte: “Chamamos predestinaçãoao eterno decreto de Deus pelo qual ele determinou consigo mesmo aquiloque ele quis que ocorresse a cada ser humano. A vida eterna é preordenada paraalguns e a perdição eterna para outros, falando deles como predestinados para avida ou para a morte”.É uma perspectiva fatalista para alguns e triunfalista para outros. A predestinaçãoproposta por ele se dá no aspecto sempre individual e nunca coletivo.A salvação não é pelas obras (até porque isso contrairia um princípio da teologiareformada), e também não é pela presciência divina. Calvino conclui que a predestinaçãoé algo fechado no próprio Deus, não é uma dispensação amorosa, masuma determinação.A causa e fundamento da eleição não podem ser as obras humanas, nem mesmoo preconhecimento ou a presciência que Deus poderia ter. Qual é, então, a base daeleição? A única causa que pode ser alegada é, simplesmente, a soberana vontadede Deus.Do mesmo modo que Deus elege uns para a salvação, também elege outros paraa perdição. E isso independe de conduta, liberdade moral, é algo estritamente ligadoà soberana vontade de Deus. E por que Deus elegeria pessoas para a perdição?Porque, para Calvino,àqueles que Deus despreza ele reprova, e faz isso não por outra razão senão porque ele querexcluí-los da herança que Deus predestinou aos que escolheu por seus filhos. Qual é a causado decreto da reprovação de Deus? É o soberano e bom prazer de Deus. Nenhuma outra causapode ser aduzida senão à sua soberana vontade. Quando, portanto, alguém perguntar por queDeus fez assim, devemos responder: porque ele quis.Não faltaram críticas a essa postura de ver a condição humana sendo sorteada.Peter Barth, por exemplo, compreende que essa concepção autoritária de ver a salvaçãoé fruto de experiências que Calvino teve com cidadãos de Genebra. É ondeele procura separar os salvos dos perdidos. A história registra que João CalvinoKelly, J. N. D. Doutrinas centrais da fé cristã. p. 279.Sobrinho, João Falcão. A predestinação conforme a Bíblia. p. 9.KLOOSTER, Fred H. A doutrina da predestinação em Calvino. p. 22.Id., ibid. p. 23.Id. p. 38.Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano III, n. 22governou a cidade de Genebra de 1541 até 1560 e submeteu a população a umgoverno que mesclava política e religião. Havia uma série de regras imposta porCalvino.O que deve chamar a nossa atenção é que na Genebra de Calvino o trabalhointenso e constante, recompensado pela prosperidade econômica, era interpretadopelos seus seguidores como um sinal da salvação dos predestinados. Na verdadea predestinação conforme a vontade divina legitimava a divisão de classes entrepobres e ricos, e uma vez predestinados assim era preciso aceitar e viver de acordocom as possibilidades.Mas como saber que se está entre os eleitos de Deus? Existem alguns critériospara reconhecer essa eleição? O calvinista fica sempre indagando se ele está ounão entre os eleitos. De que maneira pode ter certeza dessa eleição? É claro que haviacritérios espirituais para Calvino. O principal deles era a relação interior do serhumano com Deus no ato de fé. O indivíduo alcançava certa certeza ao reproduzirem sua existência as marcas da eleição: vida moral e bênçãos econômicas. Emoutras palavras: o calvinista procurava transformar-se num bom cidadão burguês.Acreditava que só dessa maneira podia ostentar as marcas da predestinação.É impressionante o pouco que Calvino tem a dizer a respeito do amor de Deus.A glória divina substitui o amor divino. Só fala nesse amor em relação aos eleitos.Nega a universalidade do amor de Deus e faz com que a negação demoníaca e aruptura do mundo adquiram certa forma de eternidade. É o que se vê em sua doutrinada predestinação dupla. Essa doutrina, portanto, contradiz o amor divino quetudo sustenta.Karl BarthA perspectiva de Barth é interessante. Enquanto Calvino parte de Deus, Barthparte de Cristo e somente dele. A cristologia de Barth coloca o centro da morteressurreiçãode Jesus Cristo como ponto fundamental da eleição-predestinação.O seu conceito graça/eleição está intimamente ligado com a obra de Cristo. É,portanto, em Cristo que ocorre a eleição e a “rejeição” — uma resposta humana auma proposta divina. A predestinação é uma demonstração da graça de Deus e seufundamento. Não há, para Barth, uma escolha deliberada e aleatória da parte deDeus, mas uma graça sendo estendida a todos e em todos os lugares.É a acolhida de Deus para com todos dentro do tempo e para a eternidade.10Com o seu método de teologia dialética, Barth trabalha Deus/Ser humano, tempo/eternidade, Deus/mundo, na tentativa de demonstrar as disparidades entre Deus eo mundo e sua imanência e transcendência com relação ao mundo. Um Deus quenão é confundido com o mundo, porque o supera, mas não é ausente do mundo,porque é um mundo amado por ele e por isso é sua aliança, sua reconciliação esua redenção proposta em Cristo. E é por meio dele, Cristo, que Deus encontra omundo e esse encontro é mediado e é possível apenas pela sua graça:[a graça] em primeiro lugar ela sublinha o fato muito simples, mas que nunca foi nem será suficientementeconsiderado: de que a graça é graça de Deus, ato seu, obra sua, vontade sua e reinoseu. Isso também significa, em todos os casos, que ela não só é uma determinação, mas umapredeterminação, predestinação da nossa existência humana; que perante ela estamos lidandoContrim, Gilberto. História global: Brasil e geral. pp. 160-161.Tillich, Paul. História do pensamento cristão. pp. 265-266.Id., ibid. p. 266.10 Barth, Karl. Dádiva e louvor. p. 238.Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano III, n. 22apenas com uma instância a deparar-se conosco, mas com uma instância superior a nós, de umasuperioridade fundamental e qualitativa. Quando nós decidimos perante ela, então sempre jáestá decidido sobre nós mesmos, portanto antes de tomarmos conhecimento dela ou de nem sequernecessitarmos dela, independentemente (e entenda-se bem, independentemente no próprioDeus) da concretização e de toda a formação pecaminosa ou justa de nossa existência.11A demonstração definitiva da graça de Deus é dada por Cristo, porque ele abre ocoração de Deus, aceitando-nos como filhos dentro do tempo e para a eternidade. Apredestinação é a graça de Deus sendo apresentada como uma consumação da reconciliaçãoem Cristo, por isso não pode haver nada antes dele, mas sim depois dele.Barth não coloca a predestinação no âmbito da soberania de Deus, mas na suagraça. Ele mesmo diz quea doutrina da predestinação é doutrina bíblica. Mas ela perde a fundamentação bíblica e o seudireito dentro da Igreja no momento em que vira uma tese independente, quer sobre a soberaniae imutabilidade de Deus, quer sobre o sentido e o teor do plano mundial divino, quer sobre anatureza e o destino de cada indivíduo.12Para o teólogo da Basileia, a predestinação, por mais que faça parte dela a presciênciadivina, não pode estar desvinculada da cristologia, uma vez que é Cristo aúltima palavra de Deus. Por isso a predestinação não pode dar-se antes da obra deCristo.Barth acusa Calvino e Lutero de sofrer influência do determinismo. Ele alega queisso trouxe consequências funestas para a compreensão da predestinação comoobra da graça de Deus, e faz um apelo para não segui-los neste ponto.13Predestinação e história da salvaçãoA tentativa aqui será de fazer uma leitura da salvação com seus eventos históricose colocar a questão da predestinação dentro desse contexto. E para isso seráinevitável passar pelos grandes temas da história salvífica, começando com Israel,seu centro em Jesus Cristo, culminando na Igreja como comunidade de gentios ejudeus tendo consciência (principalmente os gentios, uma vez que Israel é naçãoescolhida) de sua condição de pertencentes, e aí predestinados, na história da salvação.Oscar Cullmann e a história da salvaçãoCullmann trabalha com os conceitos história e salvação. No seu celebre livroCristo e o tempo, seu objetivo é marcar a essência do tempo na concepção bíblica,mais precisamente na concepção neotestamentária. Parte em busca do elementocentral da mensagem cristã e a solução é formulada desta forma: Deus se revelanuma história da salvação.O teólogo de Strasbourg mergulha em todo o corpo neotestamentário utilizandoum método histórico-filológico, partindo do ponto de que o Novo Testamento é umtexto religioso, nascido numa comunidade de fé, e, portanto, contém a mensagemdo cristianismo primitivo. Ainda que a palavra “história” seja estranha ao Novo Testamento,Cullmann situa fatos salvíficos num contexto temporal — e esta é a maiorcontribuição dele.1411 Id., ibid. pp. 239-240.12 Id. pp. 237-238.13 Id. p. 242.14 Gibellini, Rosino. A teologia do século XX. p. 256.Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano III, n. 22Para Cullmann, “os fatos salvíficos são kairói, tempos propícios escolhidos porDeus para sua ação em favor do ser humano, e seu entrelaçamento constitui umalinha temporal ascendente, que vai da criação à parusia e constitui uma história dasalvação”.15 O centro da história salvífica é Cristo: “Nele está centrada e recapituladatoda a obra soteriológica”.16O que é história da salvação? O conceito revelação, para Cullmann, não é dissociadode história. Para ele, os dois conceitos são inseparáveis. Portanto toda ahistória da salvação faz parte da essência da revelação.História da salvação nada mais é que os eventos sucessivos da parte de Deusna sua obra reconciliatória. Para constatar essa leitura soteriológica do Novo Testamento,Cullmann faz uso do método histórico-soteriológico. Com tal método eleparte da revelação cristã e dos aspectos histórico e soteriológico para construir umalinha do tempo ascendente desde Israel, passando por Cristo como seu centro echegando à Igreja como pertencente à história da salvação.17Cullmann quer conceber a mentalidade da comunidade de fé com respeito àhistória da salvação. E ele sabe que os primeiros cristãos só foram desenvolver umacompreensão da salvação proporcionada por Deus como história depois do eventoCristo. É por isso que, para o teólogo, Cristo, no entender da comunidade de fé, fazuma divisão na história. Para os primeiros cristãos, o que possibilitou esse entendimentofoi a morte/ressurreição de Jesus Cristo como ponto culminante da história.Para os primeiros cristãos, após a morte de Jesus, o coroamento daquela ação é o fato grandiosoda ressurreição de Cristo. Nenhum outro momento da história, quer seja no passado, quer nofuturo, reveste-se de uma importância tão essencial para os seres humanos de boa fé do que JesusCristo, o Primogênito, estar corporalmente ressuscitado dentre os mortos [...]. A cruz e a ressurreiçãode Cristo que formam o centro de toda a história, dando-lhe seu sentido.18O que precisa ficar evidente com o uso do método histórico-salvífico de Cullmanné a centralidade de Cristo na história humana como recurso divino no processosoteriológico.É imprescindível que fique claro que, para Cullmann, todo o tempo que precedea criação é considerado como uma preparação para a redenção operada por JesusCristo. Nele Deus já elegeu os seus (Ef 1,4); nele o Logos, que, mais tarde, se fariacarne, já está junto a ele (Jo 1,1ss); nele, de maneira plena, todo o mistério divinoda salvação, da qual Jesus Cristo é o órgão, já está, em todos os seus detalhes sobreo destino dos gentios, oculto no desígnio de Deus (Ef 3,9).19A cristologia é a ponte da construção de todos os tempos para ele. Cristo não é umtempo novo que é criado, mas uma nova divisão do tempo.20 Sua reflexão começa ater sentido quando, em se tratando da predestinação como ponto soteriológico (principalmentepara os gentios), traça um funil de eventos salvíficos na história, o que elechama de redução progressiva ou princípio da substituição. Para tanto, “o Criador deixadesenvolver no tempo uma série de eventos que suprimem a maldição do pecado eda morte, reconciliando o ser humano consigo”.21 É a partir daqui que ele trabalha coma eleição de Israel, uma minoria, para a redenção da maioria.15 Id., ibid.16 Mondin, Battista. Os grandes teólogos do século XX. p. 142.17 Id., ibid. pp. 148-149.18 Cullmann, Oscar. Cristo e o tempo. pp. 125-126.19 Id., ibid. p. 131.20 Id. p. 132.21 Id. p. 157.Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano III, n. 22A história de um só povo que determinará a salvação de todos os seres humanos. No seio dahumanidade pecadora Deus escolheu uma comunidade, o povo de Israel, para a salvação domundo. A história da salvação continua a desenvolver-se seguindo o mesmo princípio da eleiçãoe da substituição. Assim, é reproduzida uma redenção progressiva. A partir do momento emque o povo de Israel, em sua totalidade, não preenche a missão que lhe é atribuída, surge um“remanescente” que substitui o povo [...]. Esse remanescente diminui ainda e se reduz a um sóser humano, o único que pode encarregar-se do papel designado ao povo de Israel: no Dêutero-Isaías, este se torna o “Servo de Iahvé”, cujo sofrimento é vicário; em Daniel, é o “Filho doHomem”, que representa o “povo dos santos” (Dn 7,13ss).Esse ser único entra na história na pessoa de Jesus de Nazaré, que preenche, por sua vez, a missãode Servo sofredor de Iahvé e aquela de Filho do Homem, de que fala Daniel, e que, por suamorte substitutiva, cumpre a obra para a qual Deus tinha eleito Israel. Assim, até Jesus Cristo, ahistória da salvação passa, como temos mostrado, por uma redução progressiva: a humanidade— o povo de Israel — o remanescente de Israel — o Único, o Cristo. Até aí a pluralidade tende àunidade, a Jesus Cristo, que, enquanto o Messias de Israel, torna-se o Salvador da humanidade,de toda a criação. A história da salvação tem, a partir de agora, atingido seu centro.22Sendo assim, podemos, agora, convergir o método de Cullmann com a compreensãode que a predestinação faz parte da história da salvação e, de fato, é umaobra apenas salvífica e não meramente biológica e selecionista.Como Cullmann parte da minoria (Israel) para a maioria (humanidade), com oevento Cristo faz com que a comunidade seja a culminação do processo históricosalvífico.A partir do ponto central, marcado pela ressurreição de Cristo, o desenvolvimento posteriorse efetua não mais passando da pluralidade para a unidade, mas, inversamente, em sentidoprogressivo, da unidade à pluralidade, de tal maneira que essa pluralidade deve representar oÚnico. Por conseguinte, o caminho segue, a partir de agora, do Cristo aos que creem nele, que sereconhecem salvos pela fé em sua morte vicária, a qual ele substitui. Isto conduz aos apóstolos, àIgreja, que é o corpo do Único e que deve, de agora em diante, cumprir pela humanidade a missãooutrora confiada ao “remanescente”, ao “povo santo”. Isso se prolonga até a humanidade serresgatada para o seio do Reino de Deus e à criação, também, dos novos céus e da nova terra.Assim, a história da salvação, em sua totalidade, compreende dois movimentos: a passagem dapluralidade ao Único, que é a antiga Aliança, e a passagem do Único à pluralidade, que é a novaAliança. No centro se coloca o ato expiatório da morte de Cristo e sua ressurreição. Essa constataçãocorrobora a asserção de que são esses fatos o ponto central. O traço comum aos dois movimentosé seu cumprimento seguir os princípios da eleição e da substituição. Esses princípiostambém são decisivos para a presente fase de desenvolvimento que procede do centro. A Igrejano mundo, representando o corpo de Cristo, tem, no pensamento dos autores do Novo Testamento,um papel central na libertação de toda a humanidade, portanto de toda a criação.23Ele trata a Igreja como uma parcela importante dentro da história da salvação.Para a comunidade primitiva, a história da salvação não é uma simples teoria.Os primeiros cristãos conscientizaram-se de ser realmente os instrumentos de umahistória divina particular. Esse sentimento se explica por sua fé na história da salvação,no seio da qual o tempo presente, no qual a Igreja de Cristo vive, reveste-se deuma importância preeminente.24O que percebemos é que Cullmann não trata a predestinação como divisor depovos (pelo menos é nesse sentido que queremos trabalhar o método histórico-soteriológico),mas não exclui, em nenhum momento, o caráter coletivo da predestinaçãono sentido de que nada está decidido em relação às pessoas quanto à suasalvação.22 Id. p. 158.23 Id. pp. 158-160.24 Id. p. 187.Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano III, n. 22A condição de predestinado é uma garantia para todos, mas essa manifestaçãose mostra de maneira clara e satisfatória na Igreja por meio dos elementos que compõema comunidade — batismo e ceia.Para formalizar, e justificar, o uso do método histórico-soteriológico de Cullmannna discussão sobre predestinação, é necessário construir algumas bases. A primeiradelas é de que o método da história da salvação nos permite dar um sentido bíblicoaos personagens da história salvífica, ou seja, nos coloca em contato com uma leiturabíblica e não filosófica do texto. O método nos dá a possibilidade de perceberque é possível olhar o tema sob outro ângulo, o da história — aquela em que Deusentra em contato com as pessoas através de eventos históricos a fim de revelar-se.Com isso não ficamos preocupados com o supremo desígnio de Deus antes dafundação do mundo e com o que ele determinou sobre cada indivíduo, até porquesó podemos falar nessa soberana vontade por meio da história, porque é só pormeio dela que há possibilidade de afirmar que Deus está no controle, mas devidoao suceder dos fatos dentro da história. Contudo em nenhum momento isso é motivode especulação, porque, sendo Deus soberano — e essa é uma característica dasua natureza — ele se mostra na história e essa é a maneira de conhecê-lo. Portantoo amor de Deus pela humanidade, conforme os autores sagrados, não são preteridospela sua soberania. Uma segunda base que levantamos a partir do método ésua centralidade em Cristo.Não há, nem pode haver, antes dele decisão soteriológica alguma, até mesmoincluindo aí o conhecimento prévio de Deus. Só poderá haver algo nesse sentidosomente depois dele e de sua morte/ressurreição, porque ele é o centro da revelaçãoe a culminação da história salvífica. É partindo desse pressuposto que queremossituar a predestinação como base eletiva para os gentios, especificamente,uma vez que os judeus foram eleitos por Deus. É a partir daí que se faz todo umcaminho progressivo na história da salvação, para demonstrar que os gentios forampré-destinados para participarem da salvação, mas que isso só foi possível por meiode Cristo.O agir de Deus na históriaA eleição de IsraelComo parte da história da salvação, Israel é nação depositária da revelação e eleiçãopor parte de Deus. Houve uma revelação, e essa revelação foi dada a um povo nummomento específico e histórico. Por isso, de Israel temos uma revelação de amor eeleição. Essa consciência histórica do povo de Israel não foi desenvolvida por meio detextos, mas por meio de eventos históricos — como a libertação do Egito. Houve umaaliança e esta aliança é a base teológica de toda a sua existência. Israel não formulouuma história com Deus, como povo vivenciou uma história (Sl 136).A eleição de Israel nas páginas do Antigo Testamento é incontestável. A baseeletiva está, inevitavelmente, ligada com a aliança feita com Deus. São conceitosinterligados. “A concepção da eleição de Israel está intimamente ligada à noçãoda aliança, pela qual Deus, livremente, escolheu para si o seu próprio povo (Dt14,2).”25A eleição sempre foi um tema vivo para Israel, mas sua responsabilidade diantedela sempre foi motivo de reflexão. É o que vemos no Segundo-Isaías, o profeta que25 BORN, Van den (Org.). Dicionário enciclopédico da Bíblia. p. 44 0.Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano III, n. 22exegetas colocam no exílio babilônico. É somente com esse profeta que a naçãoisraelita é chamada a tomar uma posição diante do propósito de sua eleição. OSegundo-Isaías traz uma mensagem de que Israel ignorou o comissionamento divinopara com os outros povos (Is 49,1-9). Longe de querer chegar a uma conclusãosobre o que de fato é ou seria o “Servo sofredor” no texto, antes é preciso compreenderque no Segundo-Isaías trata-se da nação, ou do remanescente israelita, comodepositário dessa missão, principalmente nos cânticos do Servo.Partindo disso, o que nos parece é que “o Servo é eleito para ser aliança para ospovos e luz para as nações, para dar luz ao cego e liberdade ao preso”.26 Portanto, aeleição, a partir do Servo, ganha contornos comunicativos às outras nações. Porquea base ou os motivos da escolha de Israel não estão na nação propriamente, mas noseu propósito.27 É exatamente o propósito que Israel negligenciou.A questão é que a nação compreendeu o sentido da eleição divina, mas nãovivenciou sua vocação. Surge um sentimento de favoritismo e superioridade emrelação às outras nações, negligenciando sua vocação — “Israel não correspondeuplenamente à sua vocação. A grande palavra de chamamento do Dêutero-Isaías(49,6) foi negligenciada”.28A plenitude dos tempos: o aparecimento de JesusO Novo Testamento é fruto de uma experiência de fé que a comunidade tevecom Jesus de Nazaré. Como comunidade, cada uma, em diferentes textos neotestamentários(Paulo, os evangelhos, evangelho de João), interpretou o evento Cristode maneiras diferentes.O Novo Testamento é testemunho do aparecimento de Cristo na história. Paraos autores sagrados, o que importava era essa Boa-Nova de salvação que acabarade ser concretizada em Cristo. É a partir disso que a comunidade faz uma leituramessiânica do Antigo Testamento para comprovar uma continuidade histórica noprocesso revelacional soteriológico.Na leitura neotestamentária não resta dúvida que a comunidade, a partir deCristo, olha para trás para compreender os propósitos de Deus na história de Israele dos profetas. A história de Israel é iluminada pelo novo centro, isto é, Cristo, eseu sentido é revestido pela cristologia em relação à história da salvação.29 Esse entendimentosó foi possível pelo fato de o Povo de Deus interpretar e ver a histórialinearmente e não ciclicamente, como os gregos.O aparecimento de Cristo na história — e sua morte/ressurreição — faz com queautores como Paulo olhem a história salvífica pela perspectiva de Deus: “Vindo,porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascidosob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos aadoção de filhos” (Gl 4,4-5). Porque o evento Cristo não pode ser meramente algoaleatório na história, com certeza Deus estava preparando esse acontecimento singular,mas em nenhum momento tal acontecimento deixa de ser dentro da história,na plenitude do tempo.A comunidade percebeu muito bem o andamento da história salvífica e suaculminação em Jesus Cristo. É isso que temos nos Atos dos Apóstolos. Estêvão faz26 McKenzie, John L. Dicionário bíblico. p. 271.27 Smith, Ralph L. Teologia do Antigo Testamento. p. 131.28 Ben-Chorin, Schalom. A eleição de Israel. p. 38.29 Cullmann, Oscar. Cristo e o tempo. p. 130.Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano III, n. 22uma retrospectiva em toda a história de Israel e completa dizendo que os profetasanunciaram a vinda do Justo (7,2-53). O mesmo ocorre no capítulo 13,16-49, ondeo discurso de Paulo, segundo o autor de Atos, é uma revista na história do povoeleito de Deus e o consequente aparecimento de Jesus Cristo como o cumprimentodas promessas feitas no Antigo Testamento.Com o aparecimento de Cristo na história, Israel se viu desafiado a tomar umadecisão, e na sua maioria rejeitaram o Messias, assim como já haviam negligenciadoa sua missão aos gentios (vv. 46-48), não compreendendo que Deus nuncadeixaria de fora da sua graça outros povos.Somente pelo aparecimento dele é que a humanidade deve tomar uma decisão a favorou contra a proposta divina de reconciliação e redenção (Rm 3,22-26; At 17,30).Paulo: Apóstolo dos GentiosPara Paulo, Apóstolo dos Gentios, denominação sua, há uma abertura para ospagãos/gentios que não aconteceria se o apóstolo não tivesse a clara convicção deque os gentios também faziam parte das promessas de Israel. Porque, pelo que percebemosno início dos Atos, a Igreja judaica não tinha nenhum interesse em pregara essa gente, cometendo a mesma negligência que Israel cometeu nos primórdios.Essa atitude era legitimada por considerar os gentios impuros e idolatras.Somente com Paulo os gentios são informados de que o Deus de Israel é infinitoem graça. Porque foi por meio de sua experiência no caminho de Damasco queele compreendeu o caminho da graça, quando ali recebeu a sua vocação (At 9,15;18,6; Rm 10,12 e 11,13; Gl 3,28). Ele, então, percebe que o Ressuscitado oferecea sua salvação a todos, judeus e gentios.A história é instrumento da atuação divina. E essa atuação tem como objetivo manifestaro amor de Deus na sua busca pelo ser humano, que de alguma maneira e emalgum momento deixou de lado o seu Criador. E é sempre Deus quem vai à procura doser humano. É ele quem pergunta “onde estás?” (Gn 3,9). Nesse processo Deus trabalhacom a limitação humana, o tempo e sua história. Em razão disso ele desce para atendere sarar a aflição de um povo (Ex 3,7-8); entra em diálogo com os seres humanos paraque o conheçam; limita seu poder e sua soberania em detrimento da finitude humana,porque quer ser conhecido pela sua graça e não pelo seu poderio.Uma comunidade de predestinados: a IgrejaCom Cristo, Paulo centraliza todo o processo salvífico. Embora surjam textoscomo desde a fundação do mundo, o fato é que o aparecimento de Cristo na históriafez com que os autores sagrados e a comunidade olhassem para trás e concluíssemque de fato Deus estava no controle. Mas isso não significaria nada se ele nãoestivesse atuando no tempo. A comunidade compreende que foi na ação históricade Deus que se deu a sua eleição.E essa eleição não determinou o seu curso nem suprimiu a história, mas dá àcomunidade o fundamento de sua experiência no tempo como algo prioritário paraDeus, quer dizer, sua eleição/predestinação, pois ela tem a sua origem na vontadesalvífica de Deus — “nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo asnossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dadaem Cristo Jesus antes dos tempos eternos, e manifestada agora pelo aparecimentode nosso salvador Cristo Jesus” (2Tm 1,9-10).3030 MIRANDA, Mario de França. Libertados para a práxis da justiça. p. 52.Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano III, n. 22 10Mas é no tempo que ela se concretiza, porque foi agora que se manifestou a justiçade Deus, testemunhada pela lei e pelos profetas. É no agora que se recebe a reconciliaçãoatravés de Cristo.31 A história estava caminhando para um alvo divino, eneste alvo os gentios estavam incluídos. É aqui que entra o conceito de justificaçãoe reconciliação de Paulo. A justificação e a reconciliação seriam algo individual ouuniversal? Os dois conceitos estão extremamente ligados.Porque uma diz respeito à absolvição de todo o pecado; outra à restauração deum relacionamento com Deus.32 São dois conceitos teológicos que se dão no passado.Para o apóstolo, é uma dádiva de Deus em Cristo que foi comunicada a todosos seres humanos, até aos gentios. Porque o alvo não seria o indivíduo, mas umanova humanidade.33 Ela é uma obra terminada antes mesmo que o Evangelho sejapregado, porque se destina ao mundo.34O pecado não é mais barreira de divisão entre Deus e o ser humano, porque“Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Cor 5,19). A reconciliaçãoé um ato histórico, em Cristo, e coletivo, no mundo. Sendo assim, Deusnão quis reaver os pecados cometidos antes do aparecimento de Cristo na história,mas agora, com ele e sua obra, a humanidade é forçada a tomar uma decisão (At17,30).Uma vez que a reconciliação e a justificação são iniciativas de Deus no aspectocoletivo, seria a predestinação algo individual? Uma vez que a justificação e areconciliação são bênçãos proporcionadas por Deus em Cristo de caráter coletivoe histórico, a predestinação do mesmo modo é algo dado num momento históricocom um fim exclusivamente soteriológico.Não resta dúvida de que a salvação é uma proposta divina à humanidade, é osim de Deus em Cristo (2Cor 1,19-20). Uma vez sendo essa resposta afirmativa àsua proposta, todas as bênçãos espirituais são realizadas plenamente. E o propósitoda predestinação é concluído (Rm 8,29-30; Ef 1,4-5).Assim como a eleição no Antigo Testamento visou o povo de Israel (Dt 7,7; 14,2),a predestinação no Novo Testamento nunca é individual, mas coletiva — a Igreja,a comunidade dos santos. Não é por acaso que a Igreja primitiva tinha consciênciade constituir a raça eleita, um povo santo (1Pd 2,9).35ConclusãoVamos ser sempre alvo da graça de Deus. Israel foi alvo da graça de Deus durantea sua história. Já no Novo Testamento a graça de Deus se dá em um comportamentosalvífico de Deus — “salvar a todos” (1Tm 2,4). A universalidade do pecado e dadecadência humana encontra-se na universalidade do oferecimento da salvação(Rm 3,23-26) e sem reservas ou contas.É em nome dessa graça que o Deus Eterno entra em contato com o ser humano paracomunicar-lhe vida. E a maior expressão dessa comunicação se dá na Igreja, aquelaque tem a responsabilidade do “ministério da reconciliação” (2Cor 5,18-20).Dessa maneira, a predestinação não poderia ser algo puramente determinista eselecionista. Ela vem demonstrar

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