evangelho da cruz” “Pregar hoje a cruz de Jesus Cristo significa:1) Empenhar-se para que haja um mundo onde seja menos difícil amor, paz, fraternidade, abertura e entrega[a Deus]. Isso implica denunciar situações que geram ódio, divisão [o ateísmo] em termos de estruturas,valores, práticas e ideologias. Isso implica anunciar e realizar, numa práxis comprometida, amor,solidariedade, justiça na família, nas escolas, no sistema econômico, nas relações políticas. Esseengajamento leva como conseqüência a crises, confrontos, sofrimentos, cruzes. Aceitar a cruz que vemdeste embate é carregar a cruz como o Senhor a carregou no sentido de suportar e sofrer por razão dacausa e da vida que levamos.2) O sofrimento que se sofre nesse empenho, a cruz que se tem de carregar nesta caminhada é sofrimento emartírio [para Deus e sua causa no mundo] O mártir é mártir por causa [de Deus]. Não é mártir por causado sistema. É mártir do sistema, mas para [Deus]. Por isso o sofredor e o crucificado por causa da justiçadeste mundo é testemunha de [Deus]. Rompe o sistema fechado que se considera justo, fraterno e bom. Osofredor é mártir pela justiça, como Jesus e como todos os que o seguem, des-cobrem o futuro, deixamaberta a história para ela crescer e produzir mais justiça do que aquela que existe, mais amor do queaquele que vigora na sociedade. O sistema quer fechar e encobrir o futuro. É fatalista; julga que nãonecessita de reforma e modificação. O que suporta a cruz e sofre na luta contra esse fatalismo intrasistêmico,carrega a cruz e sofre com Jesus e como Jesus. Sofrer assim é digno. Morrer assim é valor.3) Carregar a cruz como Jesus a carregou significa, portanto, solidarizar-se com aqueles que são crucificadosneste mundo: os que sofrem violência são empobrecidos, desumanizados, ofendidos em seus direitos.Defendê-los, atacar as práticas em nome das quais são feitas não-homens, assumir a causa de sualibertação, sofrer por causa disso: eis o que é carregar a cruz. A cru de Jesus e sua morte desteengajamento pelos deserdados deste mundo.4) Tal sofrimento e morte por causa dos outros cruficificados implicam suportar a inversão dos valores que osistema faz, contra o qual se empenha. O sistema diz: estes que assumem a causa dos pequenos e semdefesasão subersivos, traidores, inimigos dos homens, [amaldiçoados pela religião e abandonados porDeus] (“maldito o que morrer na cruz”). São aqueles que querem revolucionar a ordem! Entretanto, o sofredor e o mártir se opõem ao sistema e denunciam, seus valores e práticas porque constituem ordem nadesordem. Aquilo que o sistema chama de justo, de fraterno, de bom, na realidade é injusto, discricionárioe mau. O mártir desmascara o sistema. Por isso sofre a violência dele. Sofre por causa de uma justiçamaior, por causa de outra ordem (“Se a vossa justiça não for maior do que aquela dos fariseus...”). Sofre sem odiar, suporta a cruz sem fugir dela. Carrega-a em amor da verdade e dos crucificados pelos quaisarriscou a segurança pessoal e a vida. Assim fez. Assim deverá fazer cada seguidor seu ao longo de toda ahistória. Sofre como [“amaldiçoado”], mas na verdade é abençoado; morre como [“abandonado”], mas naverdade é acolhido por [Deus]. Assim [Deus confunde] a sabedoria e a justiça deste mundo. 5) A cruz, portanto, é símbolo de rejeição e de violação do sagrado direito de [Deus] e do homem. É produtodo ódio. Empenhando-se na luta para abolir a cruz do mundo, a pessoa sofre si a cruz, imposta e infligida* Texto tirado de: Juan Luis Segundo. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré. Vol. II/1. São Paulo: Paulinas, 1985, pp. 3-16.Edição nº 03 – Janeiro/ fevereiro 2006 2Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culturepelos que criaram a cruz. Aceita-a, não porque vê nela um valor, mas porque rompe a sua lógica deviolência pelo amor. Aceitar é ser maior que a cruz; viver assim é ser mais forte que a morte.6) Pregar a cruz pode significar um convite a um ato extremo de amor e de confiança e de total descentraçãode si mesmo. A vida possui sua face dramática: há os derrotados por uma causa justa, os desesperançados,os condenados ao cárcere perpétuo, os entregues à morte fatal. Todos, de alguma forma, pendem da cruzquando não têm que carregá-la onerosamente. Muitas vezes temos que assistir ao drama humano,silenciosos e importantes, porque cada palavra de consolo poderia parecer tagarelice e cada gesto desolidariedade resignação inoperante. A garganta estrangula a palavra e a perplexidade seca as lágrimas emsua fonte. Especialmente quando a dor e a morte resultam da injustiça que dilacera o coração, ou quandoo drama é fatal, sem nenhuma saída possível. Ainda assim tem sentido, contra todo cinismo, resignação edesespero, falar da cruz. O drama não precisa necessariamente transformar-se em tragédia. Jesus Cristoque passou por tudo isto transfigurou a dor e a condenação à morte fazendo-as um ato de liberdade e deamor que se auto-entrega, [um acesso possível a Deus e] uma nova aproximação àqueles que orejeitavam: perdoou e se entregou confiante a um Maior. Perdão é a forma dolorida do amor. Entregaconfiante é a total descentração de si mesmo para Alguém que nos ultrapassa infinitamente, é arriscar-seao Mistério, como o portador último do Sentido do qual participamos mas que não criamos. Esta chance éoferecida à liberdade do homem: pode aproveitá-la e então sossega na confiança; pode perdê-la e entãosoçobra no desespero. Tanto o perdão quanto a confiança constituem as formas pelas quais não deixamosque o ódio e o desespero conservem a última palavra. É o gesto supremo da grandeza do homem.Quem morrer assim confiante e descentrado alcança o derradeiro sentido, como o revela a ressurreição,que é a plenitude de manifestação da Vida presente dentro da vida e da morte. O cristão só pode afirmarisso olhando para a Crucificado que agora é o Vivente.7) Morrer assim é viver. Dentro desta morte da cruz há uma vida que não pode ser tragada. Ela está ocultadentro da morte. Não vem depois da morte. Está dentro da vida de amor, de solidariedade e de coragemde suportar e de morrer. Com a morte ela se revela em sua potência e em sua glória.É isso que exprime São João quando diz que a elevação de Jesus na cruz é glorificação, que a “hora” étanto a hora da paixão quanto a hora da glorificação. Vigora, portanto, uma unidade entre paixão eressurreição, entre vida e morte. Viver e ser crucificado assim por causa da justiça e por causa de [Deus] éviver. Daí que a mensagem da paixão vem sempre junto com a mensagem da ressurreição. Os que morrem insurretos contra o sistema deste século e se recusaram a entrar “nos esquemas deste mundo” (Rm 12,2), eles são os ressurretos. A insurreição por causa de [Deus] e do outro é ressurreição. A mortepode parecer sem sentido. Entretanto, ela é que tem futuro e guarda o sentido da história.8) Pregar a cruz, hoje, é pregar o seguinte de Jesus. Não é dolorismo, nem magnificação do negativo. Éanúncio da positividade, do engajamento para tornar cada vez mais impossível que homens continuemcrucificando outros homens. Essa luta implica assumir a cruz e carregá-la com coragem e também sercrucificado com hombridade. Viver assim já é ressurreição, é viver a partir de uma vida que a cruz nãopode crucificar. A cruz só a revela ainda mais vitoriosa. Pregar a cruz significa: seguir Jesus é per-seguirseu caminho, pro-seguir sua causa e con-seguir sua vitória.9) [Deus] não ficou indiferente às vitimas e aos sofredores da história. Por amor e solidariedade (cf. Jô 3,16)se fez um pobre, um condenado, um crucificado e um matado. Assumiu uma realidade que contradiz,objetivamente, [a Deus], pois Ele não quer que homens empobreçam e crucifiquem outros homens. Estefato revela que a mediação privilegiada de [Deus] não é nem a glória nem a transparência do sentidohistórico mas o sofrimento real do oprimido. “Se Deus nos amou desta maneira, devemos também amarnos uns aos outros” (1Jo 4,11). Achegar-se a Deus é achegar-se aos oprimidos (Mt 25,46ss) e vice-versa. Edição nº 03 – Janeiro/ fevereiro 2006 3Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & CultureDizer que [Deus] assumiu a cruz não deve significar uma magnificação da cruz nem sua eternização.Significa apenas o quanto [Deus] amou os sofredores. Ele sofre e morre junto.Por outro lado, [Deus] não fica também indiferente aos crimes. Numa palavra, ao peso negativo dahistória. Não deixa a chaga ficar aberta até à manifestação de sua justiça no fim do mundo. Ele intervém ejustifica em Jesus ressuscitado a todos os empobrecidos e crucificados da história. A ressurreição quermostrar o verdadeiro sentido e o futuro garantido da justiça e do amor e das lutas aparentementefracassadas pelo amor e pela justiça no processo histórico. Enfim, triunfarão. Será o reino da purabondade”1. 1O que é o texto que acabamos de ler? Sem dúvida um evangelho. Àquele que estranhar a falta deaspas na palavra evangelho, quer dizer, àquele que espontaneamente, em pleno século XX, se acredita obrigado a metaforizar o termo, dedicamos estas primeiras reflexões.Que dificuldade haveria, com efeito, em dar a esta versão ¾ parcial, certamente, por se referir somente à paixão e à ressurreição, mas não mais parcial, por exemplo, do que a carta aos Hebreus¾ um estatuto semelhante ao dos quatro evangelhos canônicos ou ao que Paulo chama “seu” evangelho?Uma dificuldade há e, certamente, relevante. O que acabamos de ler não pertence nem pertenceránunca à Bíblia, também chamada, e não sem razão, o “depósito da fé”.Com isso aludimos a um fato decisivo nesse processo por meio do qual Deus vai levando seupovo à verdade. À verdade sobre Deus e sobre o homem, já que as duas coisas nunca aparecemseparadas.A Escritura consigna esse longo processo educativo e, ao pô-lo por escrito, o deposita. E dizemos que esse depósito culmina com as testemunhas diretas de Jesus, em quem se concentra atotalidade da fé e do empenho humano.Mas temos que fazer duas perguntas importantes para avaliar o que vem depois e chega até nós.Tal como o citado texto de L. Boff, entre mil outros.A primeira: pára o processo quando se fecha o depósito? De maneira alguma. A própria Bíblia nos diz por que e como continua. Para nos certificarmos disso podemos acudir àquele evangelhoque, dentro do Novo Testamento, parece ter a maior consciência de criar, para novos ouvintes, umanova formulação da mensagem de Jesus: o João. Pois bem, este faz a Jesus dizer na véspera de suamorte ¾ e pouco importa que, do ponto de vista da “inspiração”, as palavras sejam de Jesus mesmo ou de seu evangelista ¾: “Muitas coisas ainda tenho para dizer-vos, mas não as podeis 1 Leonardo Boff, Paixão de Cristo, paixão do mundo (Ed. Vozes, Petrópolis 1977) pp. 158-162. Permitimo-nos pôr dentro do próprio texto as referências diretas de Boff aos escritos do Novo Testamento, e entre colchetes asexpressões explicitamente religiosas. Com isso pretendemos que o leitor perceba e grave a diferença de linguagens,para ulteriores reflexões e leituras.Edição nº 03 – Janeiro/ fevereiro 2006 4Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culturecompreender agora (seria um peso morto para vós). Quando vier o Espírito da verdade, ele vosensinará toda a verdade” (Jo 16,12-13). A segunda: não poderá haver certo perigo em voltar rápida e mecanicamente demais à verdadedepositada, tendo o Espírito tantas coisas a nos dizer ainda e tanta verdade à qual nos conduzir?Sem dúvida. Prova-o o fato de que os evangelhos são quatro (e não um) e que já no NovoTestamento encontramos novas interpretações de Jesus, exigidas por novos contextos.O fato de que o “deposito” esteja fechado na significa, portanto, que termine também o processopelo qual Deus, mediante o Espírito de Cristo, nos conduz a toda verdade. Por que, então, se encerrao “depósito”, enquanto que a educação de Deus continua? Sem dúvida porque também no processoeducativo de cada homem num dado momento este deve sair do “depositado” nos conselhospaternos ou maternos. Não para negá-los, mas para confrontá-los com os desafios da vida. Ali,errando e corrigindo erros, o que foi depositado se tornará mais profundamente vida e possibilidadede criação. E adquirirá, dentro de novas circunstâncias, novas facetas.Nada indica a priori que as palavras de Jesus e, mais explicitamente, as de Paulo sobre o perigo do recurso à “letra morta” não se tornem a repetir, pelo menos em certa medida, com a letra dos evangelhos. Às vezes se recorre a eles não para se “inspirar” no contato com o “inspirado”, mas poruma segurança infantil. Como o jovem que recorre ao “depósito” dos conselhos paternos. Querdizer, esquivando-se do risco sadio de interpretar de novo a Jesus diante de problemáticas novas,perante as quais as respostas de Jesus, tomadas ao pé da letra, trairiam seu Espírito. A gente asestaria considerando como algo magicamente dotado de verdade. E isso acabaria levando a dar, emnome de Jesus, soluções desumanas (cf. GS n. 11).É, portanto, necessário tornar a escrever evangelhos. Isso não tira nada do maravilhoso e doexclusivo que teve o momento em que se escreveram os primeiros e canônicos. Hoje mesmo, tantosséculos depois, o Espírito de Jesus pode fazer que esses evangelhos sejam “espiritualmente” tãofiéis a Jesus como o foram os primeiros.2Temo-nos referido ao evangelho (sem aspas) da cruz, escrito por Leonardo Boff e que vem àfrente deste capítulo. O primeiro parágrafo indicou uma das principais razões que tivemos para isso.Quiséramos agora aduzir e explicar outra, não menos importante: o que temos lido no começo destaintrodução é, rigorosamente falando, um evangelho, não uma cristologia. Uma cristologia, como todo discurso de raciocínio, se desenvolve, se estuda, se ensina. Umevangelho se prega2. E justamente o título das linhas com que encabeçamos a introdução dizia: “pregar a cruz...hoje...”.2 Evidentemente não negamos que a obra de Boff a que nos referimos seja, ainda que parcialmente (enquanto se refere quase exclusivamente, e de acordo com o título dela, à Paixão), uma cristologia, e isso não desmerece seu valorEdição nº 03 – Janeiro/ fevereiro 2006 5Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & CultureNão se trata só de um título discutível ou de uma etiqueta pretensiosa e infundada. A cristologia,enquanto parte da teologia, está inserida dentro do esforço global do intellectus fidei, quer dizer, do esforço por compreender a fé. Um evangelho, entretanto, se prega; isto quer dizer que a fé éoferecida; que se chama a outros a deixarem-se penetrar por um atrativo, a estrutura desse modo omundo do sentido e dos valores. Assim o faz Jesus, segundo Marcos, uma das fontes evangélicas:“...Jesus veio para a Galiléia. Pregava o Evangelho (= boa notícia) de Deus, dizendo: ‘Completaram-se os tempos, está próximo o reino de Deus, convertei-vos e crede no Evangelho’ (=boa notícia)” (Mc 1,14-15).De acordo com o que assinalávamos no tomo anterior, essa chamada à fé não é, nem pode ser em primeiro lugar, uma chamada a uma fé religiosa. Só pode chegar a ela passando necessariamente, pela comunicação de um mundo de sentido e de valores, a outro mundo afim, já existente de algumaforma no ouvinte. Esse mundo de significação e valores é o que Jesus designa com o título de“reino de Deus”. E sua afinidade com um mundo paralelo de valores, existente em alguns de seus ouvintes ¾ pelo menos de maneira incoativa, pois ainda precisam de conversão ¾ é, logicamente, o que lhe permite dizer que a proximidade desse “reino” constitui uma boa notícia. Só que não é por isso que deixa de ser notícia. A afinidade da expectativa não significa que se creia estar “próximo” o reino. É preciso converte-se a essa esperança, aceitar esse dado que supera as possibilidadesempíricas e que, por isso, chamamos transcendentes.No evangelho da cruz, de Boff, que encabeça este capítulo, acontece o mesmo: trata-se de boanotícia de que existe uma solidariedade total, eficaz e vitoriosa do Crucificado com todos oscruficicados do mundo. Não compete a este capítulo comprovar se essa pretendida boa notícia é fiel à anterior, citada do Evangelho de Marcos. O que interessa, isso sim, é comprovar que, atravésdeste evangelho, Jesus (presumivelmente) continua convidado aos que já se interessamapaixonadamente pelos crucificados do mundo a crerem na boa notícia de sua solidariedade comeles.Depois de comprovar que o projeto de Boff é, efetivamente, paralelo ao dos outros evangelhos,analisemos brevemente a linguagem em que se expressa. Veremos que é a que corresponde àcomunicação, entre pessoas, do mundo da significação ou do sentido.O leitor recordará aqui, sem dúvida, alguns resultados de nossa análise do volume anterior. Acomunicação eficaz de sentido entre os homens requer uma dose prioritária de linguagem icônica. Alinguagem, digital, muito mais relacionada com o raciocínio (ou com o mero mostrar coisas); tem sua função própria, mas a partir das premissas (em grande parte autovalidantes). Estas se adquirem pelo mecanismo de testemunhos, isto é, pelas imagens repetidas e familiares das satisfaçõespositivo no sentido e na medida em que possui muitos elementos que abrem a cristologia a um verdadeiro e atualfalar de Jesus de Nazaré. Sirva de exemplo o capítulo que citamos em sua totalidade sobre “como pregar hoje a cruzde Nosso Senhor Jesus Cristo”. Por outra parte, a “parcialidade” deste capítulo ¾ sua única temática é a cruz ¾ não é maior que a de outros escritos do Novo Testamento, como por exemplo a carta aos Hebreus, na qual somente sãoanalisadas as relações de Jesus com o culto definitivo.Edição nº 03 – Janeiro/ fevereiro 2006 6Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Cultureinerentes aos mundos de valores, que vemos refletidos no agir de outras pessoas e, de acordo comos quais, tratamos depois nós mesmos de estruturar também o nosso.Temos visto que a linguagem artística em geral, e a poética em particular (mistura de linguagemdigital e icônica com predomínio desta única), era a mais apropriada para veicular a imagem viva deuma satisfação vinculada a certa estrutura de valores. E que quando esta linguagem chega a suaspossibilidades máximas de expressão, ela se ajusta ao seguinte esquema (expresso em formaabstrata e, portanto, digital): dado este fato, que a limitação de toda existência humana me impede de verificar (por mim mesmo), ver-se-á no final que era melhor agir assim. Como se vê, há neste esquema (vazio) geral três elementos fundamentais: a premissa ontológica(a estruturação para o agir daquilo que vale na realidade, de seu dever-ser) refletida no “assim”; apremissa epistemológica (o dado transcendente chave para poder afirmar a possibilidade deimprimir esse dever-ser à resistência do real), refletida nesse “fato” que dou por concedido sempoder verificá-lo empiricamente por mim mesmo; e a autovalidação dessas premissas, que não é umcapricho, e sim uma aposta: o futuro, quer dizer, “o final” mostrará o acerto de trabalhar com taispremissas3. Por isso, como dizíamos, não é mais que o esquema vazio (digital) onde vai habitar o espírito deuma mensagem icônica. É evidente que a comunicação eficaz de um mundo de valores não se podefazer em forma linear e expositiva: ela se realiza mediante a repetição da imagem viva desse mesmomundo em atividade. O assim do agir de Jesus se converte dessa maneira ¾ neste evangelho como nos outros ¾ em um tema com variações, cada uma das quais mostra, por sua vez, uma faceta diferente da mesma estrutura de sentido: vale a pena solidarizar-se, como Jesus, com os crucificadosdo mundo até sofrer a mesma cruz, contanto que se ponha fim a essa crucificação de uns homenspor outros.Porém, para agir assim é preciso aceitar a boa notícia (que será boa, pelos menos em primeira instância, somente para aqueles que já estiverem preocupados por esse sofrimento desnecessárioinfligido ao homem); é necessário aceitar o dado transcendente de que a cruz de Jesus não é uma 3 Kasper parece chegar a um esquema praticamente idêntico ao escrever: “A pergunta pelo sentido por parte do homem não pode ser respondida somente a partir de dentro da história. Só é possível fazê-lo do ponto de vistaescatológico. Por isso o homem se move, em todas as realizações fundamentais de seu ser, implicitamente pelaquestão sobre a vida e o sentido definitivo, É claro que a resposta só é possível no final da história. O único queagora o homem pode fazer é escutar e perscrutar a história para ver se descobre sinais em que se vislumbre este finalou em que este final até aconteça antecipadamente. Sempre serão ambíguos estes sinais dentro da história; eles só seclareiam graças à antecipação, na fé, do fim da história e, vice-versa, esta antecipação terá que certificar-seconstantemente no contato com a história. Só neste horizonte amplo da questão podem se entender em plenitude ostestemunhos da Igreja primitiva e da tradição eclesiástica posterior” (op. cit., 169). Talvez pareça que a partir daí se deveria chegar ao mesmo esquema nosso. Por que Kasper não o faz? Porque na realidade não aceita o aspectoautovalidante das premissas ou, o que dá no mesmo, seu necessário caráter de aposta. Por isso, tende, em nossaopinião, a validá-las por um raciocínio com base empírica, convertendo assim as premissas em conclusões. Justamente esse caráter de autovalidação é o que torna necessária a fé, isto é, a comunhão arriscada nos valores deoutro, sem lhe pedir sinais do céu. Sintomaticamente, Kasper passa dessa formulação ao “sinal do céu”, quer dizer, àressurreição não aos “sinais dos tempos”, isto é, à atuação concreta de Jesus, como parece que deveríamos esperá-lodepois das afirmações citadas.Edição nº 03 – Janeiro/ fevereiro 2006 7Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Cultureporta fechada, mas aberta, por onde a vida, a justiça e o amor já começam a transformar a realidadehistórica. Somente pontuando os acontecimentos com essa premissa epistemológica poderemos irencontrando na história sinais dessa libertação. Somente assim, de fato, nos acostumaremos a pôrum ponto final, esse ponto que termina cada seqüência semelhante, não na morte do mártir, mas emcada progresso do amor, da solidariedade, da justiça, por provisório, débil e ameaçado que esseprogresso pareça ser.Por outra parte, tudo isso não teria sentido se, com nosso mundo de significação e valores, nãotivéssemos embarcado numa aposta (necessária a toda existência humana) segundo a qual se tornaválida, no final ¾ escatologicamente ¾, a escolha feita. Essa escatologia é aqui a ressurreição de Jesus que dês-venda o futuro e nos faz ver, já presente em meio a uma vida aparentementesubmetida à morte, o triunfo da vida e da causa do homem; triunfo que aparecerá, em toda suarealidade e extensão, no final da história.Não obtemos assim o que H. Küng chama depreciativamente uma “estranhamente inexata evinculante ‘verdade religiosa’, igual, mais ou menos, a ‘verdade poética’”4. Não há, com efeito, mais inexatidão aqui do que o espaço necessário para que cada um crie seu próprio modo de viver,dentro de suas próprias e irrepetíveis coordenadas, esse mundo de significado. Em outras palavras:graças a Deus, a mesma poesia e a mesma inexatidão que a dos evangelhos canônicos.Somente queríamos acrescentar duas observações a propósito da linguagem empregada por Boff.Ao transcrevermos seu evangelho da cruz, tomamos a liberdade de pôr cursivamente algumaspassagens em que o autor cita praticamente os evangelhos neotestamentários, entendendo estes emsentido lado, quer dizer, compreendendo entre eles as interpretações não-narrativas, como a de SãoPaulo. Por que muda de linguagem nessas passagens, a ponto de acrescentar referência a citaçõesbíblicas?Cremos que, do ponto de vista do desenvolvimento (icônico) de seu evangelho, tais passagens,introduzidas a partir de um contexto longínquo, somente conseguem interromper uma linha deexpressão própria, que prende e cativa. A hipótese que nos ocorre como mais verossímil paraexplicar a inserção dessas passagens ¾ e em relação com o que vimos no parágrafo anterior ¾ é que a falta de criatividade na tradução (poética) atual se preenche muitas vezes com o que,sobretudo para um teólogo, é a grande tentação do menor esforço: ater-se à letra bíblica. Daí queessas passagens, a nosso ver, só suscitam um interesse erudito no exegeta ou no teólogo, interessemuito diferente ¾ ainda que por costume não o percebemos ¾ do que suscita no homem comum o próprio desenvolvimento das idéias e imagens evangélicas em termos de hoje5. 4 Op. cit., 102. Cf. infra, nota 20, p. 50. 5 Não teria sentido, como é evidente, opor-se às citações bíblicas num escrito teológico. Tentamos apenas distinguir o uso literal da Bíblia num raciocínio de teologia do mesmo uso literal quando se trata de fazer passar uma mensagemsignificativa e de criar para isso uma linguagem nova, atual, preponderantemente icônica.Edição nº 03 – Janeiro/ fevereiro 2006 8Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & CultureA segunda observação se refere às passagens ou palavras que, no mesmo evangelho aquiapresentado, temos assinalado com um colchete. Como o leitor poderá perceber, são as passagensque fazem uma referência explícita ao religioso e, em particular, a Deus. De saída, deve ficar claro que, como o estudamos no volume anterior, de nenhuma maneira nosopomos a priori ao emprego desse tipo de linguagem. Admitimos, isso sim, que é perigoso, pelomenos quando, como neste caso, não traz consigo um contexto suficientemente denso ou explícitopara poder eventualmente corrigir o que o leitor ou o ouvinte coloca sob o termo “Deus”.Está claro que os evangelhos canônicos expressam a boa notícia em termos religiosos. Mascaberia aqui fazer uma observação a esse respeito, especialmente relevante para nosso tempo. Serãoapenas notas sumárias e, por outro lado, estão longe de nos parecerem definitivas; em todo caso,não podemos passar por cima.O uso de uma terminologia religiosa num mundo total ou quase totalmente religioso não podesequer discutir-se. É inevitável. Além disso, os evangelhos têm nesse uso dois corretivosimportantes. O primeiro é que as palavras dessa linguagem, pelo menos em Israel, estavamcarregadas de um conteúdo específico. Não nos referimos somente ao decantamento do religiosooperado pela globalidade do Antigo Testamento. Além desta globalidade, tanto Jesus, quanto acomunidade cristã primitiva, privilegiaram nele, isto é, no Antigo Testamento, como teremosocasião de estudar melhor, certas tradições específicas, como a de Elias-Eliseu, o profetasemelhante a Moisés, o Servo sofredor do segundo Isaías, etc., com suas correspondentes imagensdo divino. Isso faz com que a palavra “Deus” soe nos evangelhos, se olharmos bem, de umamaneira muito mais precisa e profunda do que num texto atual, já que sua implantação na cultura“ocidental” lhe fez perder, em grande parte, a referência a tais tradições, pelo menos para o leitorcomum.O segundo corretivo é aquele que foi trazido particularmente por Jesus. Em meio ao politeísmodo Oriente de então, Jesus rejeita como decisivas as diferenças religiosas, em favor da decisoriedadede atitudes humanas mais fundamentais ainda. Os idólatras ninivitas tinham, segundo ele, umaconcepção mais acertada do divino do que os javistas ortodoxos do farisaísmo. Jesus tacharia ofarisaísmo de idolatria prática, quer dizer, em linguagem bíblica, de “adultério” (cf. Mt 12,39; 16,4e par.). O mesmo acontece provavelmente em várias outras ocasiões (cf. Mt 8,5-13 e par.; 25,31ss).Esta relativização das distinções introduzidas pela linguagem religiosa (cf. Gl 3,28; Rm 10,12; 1Cor12,13; Cl 3.11) parecem destinadas a mostrar o perigo especial da linguagem quando aplicada aosagrado e a necessidade que se segue de passar pelo critério de atitudes (mundos de significação)humanas para saber se se está falando da mesma coisa quando se empregam palavras idênticas.O que é que acontece hoje com essa linguagem? Que a unificação forçada, no Ocidente, de todosos nomes divinos num único substantivo, comum e próprio ao mesmo tempo, de “Deus”, acentuaainda mais a ambigüidade do seu conteúdo. Sirva como exemplo o fato de que filosofias queEdição nº 03 – Janeiro/ fevereiro 2006 9Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Cultureveiculam conceitos totalmente diferentes e mesmo opostos da divindade se valem da mesmapalavra. A mesma coisa se pode dizer da teologia e da piedade da tradição cristã e mesmo católica6. Um fenômeno novo vem complicar as coisas, neste ponto da linguagem religiosa: a aparição doateísmo no nível das massas e o mal-entendido de que um abismo separa esse ateísmo de tudo que éreligioso. Temos, pelo contrário, como já vimos, todas as razões para pensar que o que Jesus disse apropósito das diferenças “religiões” de sua época vale hoje também para a diferença entre ateísmo ereligião (cf. At 17,23; 1Jo 4,20).Por tudo o que foi dito, as passagens em que se fala explicitamente de Deus no Evangelho de L.Boff, mesmo tendo em conta o contexto religioso da cultura brasileira (ou, talvez, até por causadela), nos parecem, até certo ponto, um desafio não aceito. Em uma passagem Boff de “umMaior...”, “Alguém que nos ultrapassa infinitamente”. Cremos que por aí estaria a solução, assimcomo o falar de uma causa que vale mais que nossas vidas, ou outros termos semelhantes. É claroque não ignoramos que o contexto ¾ por breve que seja ¾ dessas páginas destrói, de certo modo, a ambigüidade assinalada, ao menos em boa parte.Interessa-nos a linguagem sobre Deus deste texto pela razão fundamental de que falávamos antese que, como dissemos, não tem nada a ver com uma recusa a priori da linguagem religiosa. Por todas as razões expostas, cremos que os homens devem comunicar entre si ampla, lenta eprofundamente seus respectivos mundos de sentido antes de começar a discutir se comungam ou não uma fé “religiosa”. Em outras palavras, somente sobre uma ponte solidamente estabelecida defé antropológica a questão religiosa sobre Jesus adquire relevância e precisão. Responder Encaminhar
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quarta-feira, 1 de abril de 2009
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